A metalurgia dos metais preciosos foi um dos mais antigos processos descobertos e praticados pelo homem. Existindo muito antes da metalurgia do ferro, distinguiu-se desta devido ao seu carácter não utilitário. O trabalho em ouro e prata tem por essa razão um significado muito especial que não pode ser dissociado das qualidades específicas de maleabilidade, durabilidade, brilho e inalterabilidade desses metais quando expostos a factores de corrosão que normalmente alteram ou destroem os outros metais. Por isso, têm sido utilizados desde a Antiguidade, preferencialmente no fabrico de artigos ornamentais de elevada qualidade ou para cunhagem e emissão de moeda. A abundância de metais nobres na parte ocidental da Península Ibérica confirma uma longa tradição de trabalhar o ouro e a prata em território português. Os exemplares dessa ourivesaria inicial, que se podem ver no Museu de Arqueologia, em Lisboa, atestam o vigor de uma arte que veio a criar profundas raízes em território nacional. Em Portugal, a ourivesaria tem sido uma das artes mais cultivadas e, entre as chamadas artes decorativas, a que se elevou ao mais alto nível pela sua perfeição técnica e a força do génio criador que marcou algumas das suas obras mais famosas. Apesar das perdas sofridas ao longo dos séculos, os museus, as igrejas e particulares possuem ainda admiráveis tesouros fabricados em metais nobres. Entre as colecções pertencentes ao Estado, vale a pena visitar os excepcionais núcleos dos Museus de Guimarães, Coimbra e Évora, sobressaindo, porém, o do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, onde se encontram representadas as várias épocas, formas de expressão e processos de fabrico, sendo o trabalho dos ourives documentado quase ininterruptamente ao longo dos séculos em que decorre a história do País. A ourivesaria portuguesa foi acompanhando o viver das sociedades, o evoluir das culturas. Através dela, é possível entender a religiosidade militante ou as rotas comerciais da Idade Média, a exuberante riqueza e o exotismo manuelino dos Descobrimentos, as restrições económicas do período filipino, o desafogo e a ostentação barroca de D. João V, a contenção discreta do neoclassicismo de D. Maria ou de D.João VI. Assim, vai desvendando a transformação dos metais pelo artífice, as necessidades, fantasias ou vaidades de cada época. Ao examinar as peças que chegaram até nós, verifica-se que se empregavam métodos de fabrico ainda hoje usados e se adoptaram formas e linguagens decorativas que se perpetuam — martelar, levantar os metais nobres, laminar, puncionar, burilar, cinzelar, repuxar, foi próprio dos artífices de épocas remotas e continua a sê-lo ainda hoje, quer repetindo com mais ou menos variações formas puras e harmónicas aperfeiçoadas ao longo de inúmeras gerações, quer através da procura de novas formas, técnicas e materiais.
Marcas
O ouro e a prata no seu estado puro são demasiado macios para serem utilizados na cunhagem de moeda ou no fabrico de obras de arte Habitualmente, o ouro alia-se ao cobre e á prata e esta também se liga com o cobre, o que torna os referidos metais mais duros e resistentes ao uso. Em cada país, o toque do ouro e da prata — percentagem de metal nobre contido nas ligas — obedecia a leis, sendo obrigatório pôr um sinal, ou marca, no objecto fabricado para indicar que o mesmo fora testado, ou seja ensaiado e aprovado dentro da legalidade. As marcas para a prata dos antigos contrastes municipais garantiam os toques de 11, 10 e 9 dinheiros, o que significava uma percentagem de 11, 10 e 9 avos de metal puro contido na liga, que corresponde para o ouro a 22, 20 e 18 quilates, ou ainda tanto para o ouro como para a prata a 0,916, 0,833, 0,750, segundo a actual classificação, expressa em milésimos. Por conseguinte, quando a moeda, a barra ou a obra têm 916 milésimos de toque de ensaio real, entende-se que têm 916 partes de prata ou ouro puro e 84 partes de liga (916 + 84 = 1000). O valor dos metais preciosos fez surgir desde o início da Nacionalidade inúmeras medidas e prescrições comuns a ourives e moedeiros, as quais condicionavam a produção e o comércio do ouro e da prata, estruturando em regras legais a protecção da fazenda régia. O ofício de ourives, por ser melindroso e lidar com metais preciosos que serviam também de padrão monetário, sempre foi rodeado pelo poder real de todos os cuidados e defesas. Documentos, inventários e as obras que até nós chegaram permitem supor uma actividade ouriveseira já bem enraizada no País a partir do século XIII, sendo conhecida a existência de uma Rua da Ourivesaria desde 1373 em Lisboa. Datam dos meados do século XV os mais antigos documentos que referem a organização corporativa do ofício dos ourives em Portugal. O princípio de autonomia e fiscalização profissional é conferido à corporação por D. Afonso V em carta régia de 1457, sendo determinada pelo mesmo rei, em 1460, a obrigatoriedade de marcação das obras saídas das oficinas de Lisboa. Sabemos hoje que essa marca correspondia a um barco com dois corvos, emblema da cidade de Lisboa, e a um P gótico para a cidade do Porto. Com a perda da independência em 1580, assiste-se à decadência da corporação dos ourives, pois se em 1551 existiam em Lisboa 430 artífices, em 1624 o seu número diminuiu para apenas 132. As marcas desaparecem durante quase todo o século XVII até ao reinado de D. Pedro II, que em 1688 restabelece de novo a obrigatoriedade de marcação das obras. Assim, nas marcas antigas de 1690 a 1886 — data da fundação das actuais contrastarias —, juntamente com a marca do contraste municipal da cidade, representada por uma inicial — L para Lisboa, P para o Porto, C para Coimbra —, aparece a marca do fabricante, representada pelas iniciais do seu prenome e apelido. As marcas destinadas ao ouro eram, na sua maioria, representadas pelas letras I ou X coroadas ou encimadas por granitos (grãozinhos).A partir de 1690, torna-se assim possível seguir uma cronologia, identificar centros de fabrico e mestres ourives, sendo conhecida a existência de contrastes municipais nas cidades de Aveiro, Beja, Braga, Coimbra, Évora, Guimarães, Lisboa, Porto, Setúbal e, presumivelmente, Faro e Santarém.A burilada de ensaio, conhecida vulgarmente por bicha, representa somente uma incisão sinuosa feita na peça para ensaio do toque da prata ou do ouro, não contribuindo necessariamente para a sua datação.